Amigos do Basquetebol
Encerrando a série sobre a conquista do Mundial Feminino, na Austrália, em 1994, agora quem conta um pouco sobre essa maravilhosa conquista é o professor Hermes Balbino, preparador físico da Seleção Campeã Mundial.
“Hoje, após os 20 anos da conquista do Mundial da Austrália, muitas recordações daquela conquista preenchem minhas experiências atuais como um esportista. Tenho como um dos pontos principais da memória daquele evento o propósito inicial para estar no Campeonato, que era melhorar o resultado conquistado na Malásia.
O objetivo era ir para a fase dos oito melhores. Nossa equipe vinha de um décimo lugar no Mundial em 1990, e as lembranças daquela tímida participação sufocavam uma participação competitiva para a Austrália. Era o que eu sentia no início dos treinamentos. Percebia também que a pressão para classificação olímpica e a frustração pelos resultados obtidos pela equipe para os Jogos de Seul/88 e Barcelona/92, exigiam cada vez mais do grupo, provocando intimidação.
A Mídia depositava esperanças e projetava resultados para a equipe que tinha como líderes Paula e Hortência, que eram indiretamente cobradas e pressionadas a fazer algo a mais do que participar e competir em qualquer disputa da seleção feminina de basquetebol. O desejo implícito de muitos era por vitória expressiva traduzida em medalha, pódio e a ocupação do lugar de heroínas para uma pátria que pedia por resultados esportivos.
O que se esperar de uma equipe que lutava contra as tempestades provocadas pela sua intensa vontade de vencer? Talvez a vontade estivesse indo para o lugar errado. E creio que o Prof. Waldir Pagan, de presença e atitudes sábias, fez com que a grande vontade de todos os responsáveis pelo desempenho da equipe, tanto atletas como a comissão técnica, começasse a ir para o lugar certo. Lembro-me de suas afirmativas recheadas de motivação e energia: “Vamos fazer tudo para essas meninas jogarem o melhor delas”. O resultado veio em 12 de junho de 1994.
Aqui temos um ponto: a implantação de uma conduta que se mostrou ser vencedora, que incluiu uma atitude simples e muito significativa. Lembro-me de que em outras competições, a pressão pelo resultado fazia com que a equipe jogasse o tempo todo tensa, com preocupação excessiva pela vitória que garantiria talvez os patrocínios e o emprego nos clubes quando voltássemos para o Brasil.
Jogávamos contra um adversário, mas parecia que, em nossa percepção, todos estavam na quadra contra o Brasil, e essa sensação nos perseguia até a última participação, independentemente da cor da medalha que estivesse em disputa.
Precisávamos mudar isso. Juntos decidimos focar todas as atitudes, conversas, informações, no próximo adversário que estivesse na “ordem do dia”. Era como se fôssemos construir um muro, tijolo a tijolo. Nada de pensar no tijolo futuro. Somente nos importava o jogo da vez. Vejo isso hoje como altamente positivo, pois diminuiu a pressão na participação do campeonato, e focou muito o grupo todo para produzir ações para o que estivesse em questão, que era solucionar o atual problema, vencer o jogo do aqui e agora.
Jogo a jogo, fazíamos tudo para poder dar certo a nossa melhor participação, que em primeiro momento era ficar entre os oito melhores, ou seja, passar da primeira fase. Sentimos o efeito dessa conduta após as derrotas que tivemos contra a Eslováquia no jogo de abertura e contra a China na segunda fase, pois o grupo não se abateu com os resultados e focou as ações para o jogo seguinte. Era ganhar a partida seguinte e estaríamos vivos no campeonato.
O que não funcionou foi corrigido pelas orientações do Miguel e do Sergio, e o que trazia resultados era reforçado e validado. Havíamos aprendido uma dura lição na Malásia. A sensação de cair fora deste grupo dos oito melhores já havíamos experimentado em 1990. Disputar os lugares da outra metade dos oito participantes, do nono ao décimo sexto lugar é viver uma sensação terrível; é como ficar de fora de uma grande festa, mesmo estando vestido para ela. Penso que estar nesta disputa, que muitos chamam de consolação, serve para fazer a promessa de se treinar muito para o próximo campeonato e nunca mais passar por este tipo de situação. Aprendemos pela dor e valeu.
Na abertura da segunda fase jogamos uma partida crucial contra Cuba. Aquele jogo nos deu a auto-estima de que necessitávamos. Lembro-me da partida espetacular que fizemos, pois vencemos de 20 pontos um dos mais temidos times do campeonato. As cubanas jogavam com muito vigor, e não se intimidavam contra ninguém, faziam um jogo de alto risco. Se desse certo, iam em frente; se não, era algo como o que aconteceu: afundaram abraçadas no seu jogo de força física e velocidade. Jogamos com volúpia de vencedores, e ali começou a se consolidar uma participação que já era muito mais competitiva, e que se mostrava na intensidade dos rebotes, contra-ataques, tiros de três pontos e dos ‘tocos’ espetaculares que demos nas cubanas. Jogão! Seguimos em frente, e fomos derrotados para a China, aparentemente prontas para uma vitória na final. Aparentemente.
E veio a alta tensão. O jogo contra a Espanha, que nos colocaria entre os quatro melhores, foi talvez a mais áspera lembrança deste Campeonato. As coisas não andavam, todos estavam muito desgastados pela intensidade do campeonato, que tinha 8 jogos em 10 dias, no mais alto nível. Embora fosse a Espanha um adversário que não tinha presença do tamanho de outras equipes que foram para vencer na Austrália, também acreditou que vencer o Brasil significava um lugar entre os quatro melhores do mundo.
Esse jogo ficou indefinido até que faltasse 1’21’’ para acabar. Numa seqüência muito feliz, nossa equipe deixou para resolver todas as situações em rebotes, contra-ataques e ‘desopilar’ a angústia que se construíra desde a Malásia para experimentar a liberdade de participar de uma semi-final de Campeonato do Mundo. Para aquela geração experiente mesclada pela juventude das meninas que vinham para injetar combustível na experiência de Paula e Hortência, magníficas jogadoras reconhecidas pelo mundo, ganhar aquele jogo seria uma festa única, que nos tirava do lado de fora e nos colocava dentro da pista de dança.
Agora sim poderíamos dizer o que era disputar um pódio de Mundial, ou seja, jogar para vencer um Campeonato do Mundo. A vitória contra a Espanha foi isso, entrar para o seleto clube de candidatos ao pódio, e a equipe persistiu até o cronômetro zerar. Palmas para o espírito guerreiro de todo o grupo, que nos alimentou segundo a segundo neste jogo.
Vejo hoje que a semifinal contra as americanas nos provocava medo, mas um medo positivo, que anunciava sim uma ameaça, porém uma ameaça que servia de alerta. Essa apreensão nos levou a escolher estratégias regadas pelo compromisso com o jogo da autonomia e da liberdade – afinal, o que tínhamos a perder? Todos deram mais do que o seu melhor. Aqui até balançar a toalha no banco valia ponto.
A equipe se soltou pelo tratamento que nos foi dado pelas americanas, e que talvez fosse dado também às outras equipes. Estávamos no mesmo hotel, mas parecia que não estávamos lá. Ninguém, até aquela hora, nos olhava com respeito, mas sim com um certo desdém. Quem acreditava que um décimo lugar em 1990 pudesse disputar algo que não uma mera participação um pouco melhor em 1994? É claro que fazer final, para alguns observadores internacionais, nem pensar!
Bem, e veio o jogo tão esperado. Interessante o comportamento de nossa equipe, pois aquele jogo significava passar para a final, ou seja, era um jogo só de uma única fase. E nossa equipe se comportou como quem tomava conta da quadra, desde o primeiro ataque até o zero do cronômetro. Em todos os momentos estivemos à frente, e as adversárias que até aquele jogo não tinham notado nossa presença, viram que em lagoa silenciosa também tem crocodilo nadando. Afinal, estávamos na Austrália!
Jogo final contra a China. Creio que todos nós acreditávamos agora que era possível construir a vitória, mesmo tendo perdido para a China em um momento anterior e não muito distante no campeonato. A pivô gigante Haixia já não assustava como há quatro dias antes. Ela deve se lembrar até agora do maravilhoso ‘toco’ que ganhou de nossa defesa, que não se intimidou com o currículo da chinesa.
A equipe expressava a convicção pela crença de que com trabalho e competência se chega às conquistas desejadas, e estar em primeiro era questão de trabalhar bem, e jogar no melhor que cada uma pudesse fazer para a equipe. Do lado de fora, fazíamos o trabalho que a Comissão Técnica deve fazer, lembrando novamente o lema do Prof. Waldir Pagan: “Vamos fazer de tudo para essas meninas jogarem o melhor delas”. E assim foi feito.
O jogo foi acontecendo e a precisão dos passes, a solidariedade nas assistências, a beleza dos arremessos foi construindo um placar que se iluminava em nosso favor. A confiança pelo bom trabalho se traduziu na merecida vitória. Em todos os momentos fomos fortes, unidos, objetivos, e competentes. Jogamos de verde e amarelo. Um forte sentimento de cooperação e solidariedade, além da confiança no trabalho de equipe brilhava na face de cada um que era membro daquele grupo. Creio que foi um dos momentos mais brilhantes da seleção de basquetebol feminino do Brasil, não só pela magnitude do resultado conquistado, como também pelo empenho que todas tiveram em jogar para a equipe, do trabalho que todos fizeram para que tomássemos para nós o melhor resultado que seria fruto da essência do trabalho coletivo, como é o fundamento maior do basquetebol. Hoje, olhando à distância de vinte anos, noto que, a cada saída para o jogo do dia, esse propósito que fez com que todos abandonassem o ego no hotel, para formarmos um “Eu Equipe” dentro da quadra.
E nós recebemos delas um prêmio maior ainda do que o primeiro lugar. Aquelas moças nos ensinaram que, mesmo sendo cada uma delas excelentes jogadoras, agindo como equipe eram melhores ainda. Essa foi a força que surpreendeu e venceu em 1994 o Campeonato Mundial Feminino de Basquete na Austrália.
Gratidão a todos que cooperaram e estiveram disponíveis para esta conquista.”
Hermes Balbino